Verás que um filho teu não foge à luta, mais do que trecho do hino nacional, deverá servir de norte para que nenhum direito se perca, mesmo se for preciso recomeçar a batalha dos séculos XIX e XX, em pleno século XXI.
O título desse artigo vem na esteira de um meme que se popularizou nas redes sociais e que visa, em certa medida, estabelecer uma comparação e, até uma leve provocação, entre pessoas, objetos, institutos.
É bem verdade que não tem sido fácil acompanhar o ritmo da geração que se comunica, quase que exclusivamente, por meio de redes sociais. Geração que muito pouco sabe sobre a importância e origem do movimento sindical. No entanto, o movimento sindical atravessa o tempo e as gerações, tamanha sua importância para a classe trabalhadora e para a construção de um país mais justo, fraterno e solidário.
Sendo assim, sem a pretensão de esvaziar o assunto, mas de estabelecer balizas conceituais, que não ensejem interpretações equivocadas quanto ao que verdadeiramente decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre o custeio sindical, mais precisamente, sobre a contribuição assistencial extensiva aos não filiados, no último dia 11 de setembro, faço aqui a pergunta do meme citado acima e que viralizou nas redes: Por que choras?
Mas vamos lá: falar em movimento sindical é se deparar com o grande responsável pelas conquistas de inúmeros direitos que cercam e protegem as nossas vidas e trabalhos, pelo menos, desde a geração baby boomers (1946-1964). Daí por que necessário contextualizá-lo, face ao contínuo processo de reforma normativa, que insiste em o rodear.
Dadas essas premissas iniciais, rememoro parte das reflexões trazidas, em artigo de minha autoria, sobre trabalho e movimento sindical:
A história da humanidade está intimamente ligada ao conceito de trabalho e, segundo a Bíblia, Adão, o primeiro homem a povoar o planeta Terra, foi quem primeiro o vivenciou. Da leitura do livro de Gênesis consta o decreto Divino de que, da terra, ele retiraria o sustento necessário para todos os dias de sua vida, a partir do suor do seu rosto. Mas nem mesmo Adão poderia imaginar quão sorrateiros eram os planos para o direito do trabalho e sindical no século XXI.
No seio deste solo, no começo do século XX, a classe operária começou a se insurgir, para não morrer de tanto trabalhar, ou em um acidente de trabalho, ou simplesmente para não morrer de fome. Nesta época do chamado liberalismo absoluto, direitos e leis trabalhistas não estavam na pauta. Foram necessários vários anos de greves, manifestações, exílio e morte para Consolidar as Leis do Trabalho, em 1943. O Brasil, sob o comando de Getúlio Vargas, vivia o fim da República Velha. E desde aquele tempo, os patrões se recusavam a dar crédito à luta operária e se utilizavam dos canais de comunicação para desmistificá-la.
E a década de 80, tão impulsionada pela militância, também foi palco de uma transição perigosa para o mundo do trabalho, fundada no neoliberalismo, que tinha fome de retirada de direitos e sede de privatizações.
O primado do trabalho e do emprego, uma das principais conquistas do mundo ocidental capitalista, passou a ser alvo de um projeto de desconstrução, amparado na criação de condições cada vez mais favoráveis aos investimentos privados e cada vez menos comprometidos com o trabalhador. Todos os esforços orbitavam para a gestão da moeda.
E nessa quadra do tempo, a natureza estrutural do desemprego, associada às inovações tecnológicas, passou a reger um novo capitalismo, em que não apenas a relação empregatícia, mas, a própria realidade do trabalho, foram colocadas em xeque. A primazia da iniciativa privada se impôs sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos sociais dos trabalhadores. 1 (Grifou-se)
Com efeito, na busca da concretização de um Estado Democrático de Direito, por meio da manifestação das entidades da sociedade civil, incluindo o sistema confederativo sindical; da regulação econômica e na expectativa de uma distribuição de renda mais igualitária, o que vimos nos últimos anos foi um revés, mediante o implemento de reformas bastante hostis, que alteraram substancialmente o direito do trabalho, nos âmbitos individual, coletivo e processual. Segundo Cezar Britto:
Não se pode deixar de anotar, enfim, que o processo histórico testemunha que o direito posto no mundo do trabalho está em permanente mudança, evoluindo ou regredindo a depender da forma com que o direito rebelado se faz norma; reacionário se fundado no ter ou revolucionário se focado no ser. Daí porque uma legislação inacabada, salvo quando um dia revogada a exploração da pessoa humana.2 (Grifou-se)
A norma, fruto desse direito rebelado, não deixou de fora um dos principais porta-vozes do mundo do trabalho: o sindicato. Nessa toada o “ter” de volta a quantia referente a um dia de labor foi contemplado pela Lei 13.467/2017, que retirou a obrigatoriedade do desconto e deu nova redação aos artigos 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para condicionar o recolhimento da contribuição sindical à expressa autorização dos trabalhadores.
A organização sindical foi, portanto, alvo de exacerbada flexibilização e desestruturação, no momento em que a norma rompeu, de forma abrupta, com a sua principal forma de custeio. Muito além das conquistas históricas de jornada de trabalho, horas extras, insalubridade, dentre outras, a luta sindical mais eminente perpassou a manutenção do emprego e focou na própria sobrevivência.
A irresignação com a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, pautada nos argumentos da ausência de um debate robusto sobre o imposto sindical e de uma previsão mínima de transição desta para outra forma de custeio, chegou ao Supremo Tribunal Federal, que recebeu 18 ações diretas de inconstitucionalidade e uma ação declaratória de constitucionalidade.
A Corte, por 6 votos a 3, decidiu, em junho de 2018, pela constitucionalidade do ponto da Reforma Trabalhista, que extinguiu a obrigatoriedade da contribuição sindical, por ferir, segundo o seu entendimento, o adágio da liberdade sindical.
O entendimento que predominou no STF veio na esteira do que, há muito, se ventilava na doutrina e jurisprudência. Isso porque, de fato, a liberdade sindical, contida no texto constitucional, esbarra em um paradoxo: ao mesmo tempo em que anuncia que é livre a organização sindical, de forma taxativa a limita, mormente quando proíbe que mais de um sindicato represente uma determinada categoria profissional ou econômica em uma mesma base territorial. E, ao mesmo tempo em que dispõe que ninguém é obrigado a se filiar ou se manter filiado, recepciona uma contribuição obrigatória indistintamente.
Toda essa contextualização é necessária para compreendermos o que fora, de fato, decidido no Agravo no Recurso Extraordinário (ARE) 1.018.459/PR, tema 935, em repercussão geral, pois não se trata de um novo imposto sindical, não se trata do retorno da contribuição sindical obrigatória, já declarada facultativa pela Suprema Corte em 2018.
É importante destacar que a contribuição sindical não encerra em si mesma o modelo de financiamento das entidades sindicais. Ela é uma das quatro fontes previstas. A sua natureza de tributo, a obrigatoriedade, independentemente de filiação, a ausência de critérios mínimos de representatividade sindical e a proliferação de entidades, que contavam unicamente com essa fonte de custeio a tornou impopular.
Até 2017, a sua sistemática consistia no desconto, compulsório, de um dia de trabalho de todos aqueles que fizessem parte de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão. Inexistindo sindicato, o valor era destinado à Federação correspondente e, na ausência desta, à Confederação correspondente, por meio do código de enquadramento sindical obtido a partir do registro no Cadastro Nacional de Entidades Sindicais do Ministério do Trabalho.
O movimento sindical dispõe, ainda, de três outras fontes de custeio: contribuição assistencial, contribuição confederativa (artigo 8º, IV da Constituição Federal) e contribuição associativa (ou mensalidade sindical).
E nesse ponto é que voltamos ao título do presente artigo: Por que choras, Imposto Sindical?
A resposta nos parece clarividente, na medida em que o Imposto Sindical, outrora fonte de custeio por excelência, não foi retomado, em que pese as inúmeras tentativas de se fazer crer que sim e, provavelmente de se manter a ojeriza à luta operária.
A confusão sobre os julgados do Supremo Tribunal Federal acerca dessas duas formas de custeio não merece prosperar, pois contribuição sindical e assistencial em nada se assemelham. Exceto por um único trecho, que, lido de forma isolada, pode levar ao equívoco de se acreditar na volta do “todo poderoso” Imposto Sindical.
E aqui não se minimiza o compreensível temor daqueles que, em um passado recente, viram o recolhimento e o repasse de o imposto sindical serem destinados para entidades pouco ou nada representativas, sem qualquer poder negocial e sem histórico de conquistas para a categoria.
O trecho em questão, fixado na tese de repercussão geral, é o trecho que informa que a contribuição assistencial passa a partir de agora a ser obrigatória, inclusive para os não filiados e reflete uma mudança de rota no entendimento da Corte3 e do Tribunal Superior do Trabalho, no Precedente Normativo 119 (4).
A tese de repercussão geral, fixada no julgamento encerrado no último 11 de setembro, no Tema 935, foi a seguinte:
“É constitucional a instituição, por acordo ou convenção coletivos, de contribuições assistenciais a serem impostas a todos os empregados da categoria, ainda que não sindicalizados, desde que assegurado o direito de oposição”.
A verdade inarredável é que, a decisão do Supremo Tribunal Federal, no ARE 1.018.459/PR, veio na esteira de uma reparação ao movimento sindical brasileiro, que precisou se reinventar, mesmo sem uma transição em sua forma de custeio. A Reforma trabalhista gestou uma açodada reforma sindical, que, longe de fortalecer e ajustar o modelo vigente, acabou por enfraquecê-lo e asfixiá-lo.
Nessa toada, a contribuição assistencial é mais do que bem-vinda, pois privilegia a entidade que verdadeiramente faz uso da sua função social. Que verdadeiramente luta pelo direito da categoria para quem serve de substituto processual. E pode ser questionada, via direito de oposição, quando vier de entidade manifestamente inoperante. Esse é um direito que não era garantido quando do desconto do imposto sindical obrigatório.
Percebe-se, pois, que o direito de oposição mitiga a obrigatoriedade de desconto da contribuição assistencial, ainda que aprovado por assembleia e fixado por acordo ou convenção coletiva para o custeio das atividades assistenciais dos sindicatos.
De mais a mais, diferentemente do antigo imposto sindical obrigatório, a contribuição assistencial permite separar o joio do trigo, na medida em que evidencia mais facilmente os frutos da entidade que melhor exerce a função negocial, em prol da categoria. Que trabalhador vai se opor a contribuir para a entidade que o defende e luta por seus direitos? Provavelmente um número muito baixo.
O movimento sindical segue vivo, como fênix, renascendo das cinzas de uma reforma trabalhista e sindical duríssima, e mostra que perpassa gerações quando a luta se volta para o trabalho como fator da dignidade da pessoa humana. É preciso ter a consciência de que combater o bom combate sindical é o meio mais seguro para a conquista de novos direitos e manutenção daqueles até aqui alcançados, com sangue, suor e lágrimas.
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1 SENA, Caroline. Os muitos nós na garganta do trabalha(dor). Boletim eletrônico da ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas. Número 53. Brasília. 10 abril 2017. Disponível em https://abrat.adv.br/informativo/informativo_abrat_abril2017_bx.pdf.pdf. Acesso em 14 de setembro de 2023.
2 BRITTO, Cezar. A contratação do advogado sindical: breve estudo. Belo Horizonte. RTM. 2014. pág. 50.
3 Tema 935 “É inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados”
4 “Contribuições Sindicais – Inobservância de preceitos constitucionais. A Constituição da República, em seus artigos 5º, XX e 8º, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistência, revigoramento ou fortalecimento sindical e outros da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados”.
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Caroline Sena é advogada trabalhista e sindical; especialista em Direito Sindical pelo IESB – Instituto de Ensino Superior de Brasília; especialista em compliance trabalhista, direito digital e LGPD pela Escola Mineira de Direito. Assessora Jurídica da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital; Diretora da Associação de Advogados Trabalhistas do Distrito Federal – AATDF