Trabalhar nunca foi tão exaustivo. Médico virou divulgador de si mesmo, padeiro filma a fornada, pedreiro mostra a obra em vídeo curto, advogada comenta decisão como se apresentasse telejornal. Autônomo e funcionário com carteira disputam o mesmo palco, a própria vitrine. Hoje não basta fazer, é preciso parecer; não basta entregar, é preciso narrar, e quem não se anuncia vira paisagem.
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Depois dos 50, o roteiro inclui outro turno: entregar no emprego enquanto já rascunho o próximo, porque o mercado quer ver “presença”, “atualização”, “relevância”. Não sou eu que digo. Antes de ligar, o recrutador já fuça Google, LinkedIn, Instagram e qualquer outro rastro: currículo virou nota de rodapé do comportamento digital.
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A parte mais desonesta é a exigência de biografia “invejável”. Não basta competência; tem que ter narrativa irresistível, rede impecável, casca grossa e brilho perene. A receita está dada por toda parte: clareza de proposta, coerência entre o que você faz e o que você mostra, visibilidade constante, como se atualizar fosse uma obrigação moral. O recado subliminar é simples: sem presença digital decente você some, inclusive porque muita vaga circula no subterrâneo das indicações.
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Cansa. Cansa performar a própria existência (…). Cansa medir cada frase pelo potencial de engajamento. Cansa ficar interessante por atacado: carreira, viagem, amizade, rotina, tudo empacotado em carrossel. Cansa caminhar com a cabeça um passo à frente do presente, sempre pensando “isso rende? isso me posiciona?”. No fim do dia, virei minha própria chefe tóxica, aquela que não respeita horário, que cobra um post melhor, que olha minha vida íntima como ativo de marketing.
Mariliz Pereira Jorge, jornalista, publicado na Folha de S. Paulo
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