*Fábio Galib
Drinque, que faz bonito no boteco e no bar chique, era a principal bandeira do Mestre Derivan, ícone da coquetelaria morto no último dia 18
É um ritual que se repete nas noites de quarta e quinta. Os músicos que sobem ao palco do Fino da Bossa, uma pequena casa de shows de Pinheiros, interrompem a apresentação enquanto o garçom serve doses de rabo de galo ao público presente. Eis que o proprietário do lugar, o empresário Raul Corrêa da Silva, pede a palavra e convoca a todos a erguerem o copo em homenagem à memória de Belchior.
Trata-se do “brinde que nunca aconteceu”, como costuma dizer Raul, amigo pessoal do finado cantor a quem tentou em vão tirar do mundo dos vinhos para saudar a vida com o coquetel.
“O rabo de galo é um drinque popular, tipicamente paulistano, e gostaria de ter tido a chance de compartilhar uma dose com ele”, diz Raul, ao justificar sua escolha para tal reverência.
Verdadeiro patrimônio da botecagem nacional, o rabo de galo é uma bebida à base de cachaça e, em bate papo com os bartenders, acredita-se que é mais consumida do que a caipirinha, embora não tenha dados oficiais que comprovem.
Para se ter ideia, uma estimativa recente do Concurso Nacional do Rabo de Galo conta que, dos 1,3 bilhão de litros do destilado de cana produzido anualmente no país, cerca de 70% é consumido na forma do drinque.
Criado nos anos 50 por iniciativa de uma indústria italiana de bebidas que se instalara por aqui a fim de popularizar o vermute, rapidamente, se espalhou pelos balcões de padarias e botequins como uma opção de bebida simples e barata. O nome traduz a palavra coquetel do inglês (“cock” é galo e “tail”, rabo).
A bebida, no entanto, vem ganhando cada vez mais espaço nos bares da moda, tendo inclusive grandes bartenders entre seus entusiasmados divulgadores. Um deles foi Derivan Ferreira de Souza, morto no último dia 18 de maio aos 68 anos após um mal súbito, justamente enquanto levava o seu Concurso Internacional Rabo de Galo a Portugal.
“Foi ele quem abriu as portas da nossa profissão”, diz Ricardo Barrero, chef de bar da Modern Mamma Osteria e que também é responsável pelos drinques do Ella | Fitz, ambas as casas pertencentes à dupla Salvatore Loi e Paulo Barros. “Mais do que isso, Derivan mostrou para todos o que é hospitalidade.”
“Ele foi uma das maiores referências da área e levantou essa bandeira da coquetelaria nacional, em especial do rabo de galo”, conta Ale D’Agostino, experiente bartender da cena paulistana. Ele é um dos fundadores da APTK Spirits, empresa de drinques engarrafados que recentemente desenvolveu uma variação da receita para ser servida no luxuosíssimo hotel Rosewood São Paulo.
Mas, afinal, o que fez com que um drinque tão prosaico ganhasse tamanho status? Para D’Agostino “em termos de sabor, traz toda uma complexidade, tal qual um Negroni ou um Manhattan.” Se a receita original era composta de dois terços de cachaça para um terço de vermute, hoje são comuns leves variações.
No caso do Fino da Bossa, Raul faz questão de manter a tradição, com cachaça premium e vermute importado. Já D’Agostino tem entre suas criações o Gallo Tropicalle, com um toque de licor tropical, e que deve voltar ao portfólio da APTK.
“Também gosto de fazer uma variação com vinho Jerez fino, que quebra a doçura, traz leveza e um final amadeirado.”. E completa: “é um coquetel que tem várias possibilidades”.
Michel Felício, titular das coqueteleiras do Bottega 21, conta que recebeu Derivan em seu balcão uma semana antes de sua viagem ao país europeu. “Conversamos bastante sobre o rabo de galo e o quanto ele estava empolgado para esta ida a Portugal”, conta.
Michel acredita que, com a morte do Mestre, como era chamado, a comunidade dos bares vai se unir para, enfim, incluir o coquetel na carta da International Bartender Association (IBA), tido como o livro-guia dos profissionais de todo o mundo. “Era seu grande objetivo em vida”, diz. As gerações de bartender que ele ajudou a formar agradecem.
Fábio Galib – é jornalista e há quinze anos escreve sobre gastronomia. Foi repórter do Jornal da Tarde e do Estadão, nos quais integrou a equipe que lançou os guias “Divirta-se”. Na Editora Abril, editou as publicações regionais de Veja Comer & Beber e foi crítico de bares e comidinhas de Veja São Paulo.
Fonte: CNN, com foto de Daniel Cancini