De acordo com o IBGE, 92% dos trabalhadores domésticos brasileiros são mulheres e 63% deles são negros . Apesar desse perfil, de maioria de mulheres negras se destacar no quadro, o dado não anula a existência de outros perfis atuando na área, como pessoas da comunidade LGBTQIA+ , grupo que também é fragilizado socialmente e está exposto a situações de constrangimento e invisibilidade.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o trabalho doméstico remunerado no Brasil é caracterizado por uma atividade precária , com baixos rendimentos, baixa proteção social, discriminação e até assédio.
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O caso de Rubem Silva, 42, o Rubinho, é um exemplo do que a instituição defende. Em 2000, ele saiu do Nordeste e foi morar em São Paulo, onde conseguiu um trabalho como empregado doméstico. Em uma situação financeira instável, ele morou durante oito meses na casa dos patrões, o tempo em que trabalhou lá. Nesse período, conta que foi assediado sexualmente cinco vezes pelo marido da patroa.
“Quando ela viajava a trabalho e o marido ficava, ele vinha no meu quarto, de madrugada, que era uma edícula fora da casa, e me obrigava a fazer sexo oral nele. Me ameaçava, dizendo que iria falar para a esposa que eu estava dando em cima dele. Me vi obrigado a fazer aquela situação por não ter onde ficar. Quando cheguei em São Paulo, minha mãe já morava aqui, mas ela não me aceitava [sobre ser gay], então, eu tive que me sujeitar a certos tipos de coisa”, conta Rubinho, que hoje não trabalha mais na área e atua como técnico de enfermagem em um hospital da cidade.
Até 2012, ele trabalhou em várias casas e diz que sempre era recomendado para outras famílias pelo seu serviço bem feito. Em uma dessas indicações, Rubinho conta que recebia muito bem, três vezes mais do que normalmente cobrava para fazer uma faxina, mas também sofria assédio sexual e não sabia o que fazer para evitá-lo, por achar que poderia perder o trabalho e as indicações.
“Os patrões sempre saíam e deixavam a casa livre para eu fazer a faxina, mas o filho deles, que já tinha 32 anos, sempre aparecia e ficava mexendo comigo. Me falava que, se eu contasse alguma para os pais dele, não iriam acreditar em mim e, mais uma vez, eu acabei me sujeitando em fazer o que ele queria, por medo de perder aquele trabalho, aquele dinheiro e ainda ficar mal falado e perder os outros trabalhos que eu também tinha. Era uma rede de pessoas conhecidas que me indicavam uns para os outros”, relembra, ao falar de todo tipo de assédio sexual a que foi submetido por esse homem.

Foto: Banco de Imagens/Pexels
Segundo o Ipea, o trabalho doméstico remunerado no Brasil é caracterizado por uma atividade precária, com baixos rendimentos, baixa proteção social, discriminação e até assédio
Em todos os trabalhos como empregado doméstico, Rubinho nunca teve a carteira assinada, nem mesmo quando trabalhava durante todos os dias úteis na mesma casa. Segundo a lei 5.859/72, o empregado doméstico é “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou família [contratantes], no âmbito residencial destas”.
Em 2019, o número de empregados domésticos no Brasil bateu recorde, totalizando 6,356 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Desse total, apenas 1,7 milhões possuíam carteira de trabalho assinada. A crise econômica brasileira fez com que muitas famílias dispensassem o serviço ou contratassem diaristas em vez de um profissional com carteira assinada. Divulgada em fevereiro deste ano, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), referente ao último trimestre de 2020, informou uma queda no número de empregados domésticos. Atualmente, o número é estimado em 4,9 milhões de trabalhadores.
Alexandro Luiz da Silva, 39, começou a trabalhar no Recife aos 15 anos de idade como empregado doméstico. Em 1997, ele e as parentes – a mãe, a irmã e a avó, todas empregadas domésticas – enfrentavam dificuldades financeiras em casa, e, por isso, ele deu início à sua atividade profissional para ajudar na renda familiar. Na mesma época, parou de estudar, cursou apenas até o nono ano do ensino fundamental. Nunca mais parou de trabalhar.
A primeira experiência profissional de Alex, como é conhecido, foi na casa de uma amiga que precisava de ajuda para limpar a residência e para cuidar dos filhos. “Eu comecei a trabalhar em casa de família quando eu tinha 15 anos e eu sempre fiz tudo, lavava, cozinhava, levava os filhos da patroa para a escola. Daí em diante, até hoje, não tive vergonha, sempre trabalhei na área”, afirma. “Fiquei quatro anos nesse primeiro emprego. Os meninos que criei, cresceram, são todos adultos. Até hoje, me chamam de tio e me respeitam”, conta ele.
Alexandro diz que se identifica como homossexual, mas que nunca percebeu nenhum preconceito por sua orientação sexual nas casas onde trabalhou. Quando acha alguma situação “estranha”, diz que ignora.
“Eu sou gay. Até agora, nunca teve nenhuma situação de preconceito no meu trabalho. Os patrões são todos casados, têm filhos. Eu chego, dou bom dia e faço meu serviço. É tudo profissional e sei respeitar as pessoas. Quando acontece alguma coisa, algum comentário, eu relevo porque a gente tem que seguir em frente. Se eu nasci assim, as pessoas têm que me respeitar assim, do jeito que eu sou. Se algum patrão tem algum olhar diferente, faz algum comentário, eu não dou atenção porque eu estou ali para trabalhar”, declara o empregado doméstico.
Por ser homem, Alex diz que percebe um estranhamento de seus contratantes no primeiro momento, mas afirma que é algo passageiro. “A maioria fica com o pé atrás por eu ser homem, mas depois acostuma, pega uma ‘amizade’ e a gente passa a ter uma relação de trabalho normal”, diz. “As pessoas estão mudando. Antigamente, não havia um homem, mesmo gay, trabalhando como doméstico, mas hoje é o que mais se vê, ‘homem doméstico’”, opina.
No segundo emprego de Alex, na casa de uma senhora de 70 anos, ele teve a carteira de trabalho assinada pela primeira vez. “Ela gostou de mim e me contratou”, diz. Depois de alguns anos, conseguiu um outro emprego na função de Serviços Gerais do Aeroporto Internacional do Recife, onde continuou com a carteira assinada. Ao deixar a atividade, voltou a atuar como empregado doméstico, mas, desde então e até hoje, de maneira informal, como diarista.

Foto: Arquivo pessoal
‘Hoje em dia, a maioria das pessoas quer mais diaristas, não querem assinar a carteira da gente’, diz Alexandro Silva
“Hoje em dia, a maioria das pessoas quer mais diaristas, não querem assinar a carteira da gente, um funcionário fixo. Não cheguei a conversar com nenhum patrão, dizer que queria ter a carteira assinada. Não achava que isso era possível”, relata Alexandro da Silva.
Em 2019, o Ipea divulgou um retrato sociodemográfico do trabalho doméstico no Brasil que mostra que a informalidade cresceu, assim como a quantidade de diaristas. Em 2013, mais de 30% dos trabalhadores domésticos tinham carteira assinada, mas esse número caiu, chegando a 28,3% em 2018. Os dados fazem parte do estudo Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século 21: Reflexões para o Caso Brasileiro a Partir dos Dados da PNAD Contínua.
Atualmente, Alexandro trabalha três ou quatro vezes na semana em um mesmo apartamento, onde faz a faxina, cozinha e ajuda a cuidar de um menino de dois anos de idade. No final do mês, ele conta que consegue lucrar pouco mais que um salário mínimo, mas depende da quantidade de vezes que é chamado para trabalhar e da quantidade de casas diferentes que consegue atender.
“Antes da pandemia, eu tinha três trabalhos fixos, mas agora eu só tenho um. Ficou mais difícil. As pessoas estão isoladas em casa e não estão querendo que vá fazer a faxina. Estou bem apertado [com dificuldades financeiras], não vou mentir. No ano passado, consegui o auxílio emergencial e me ajudou muito. Agora, ainda não consegui sacar, mas também vai ser bom. É menos, mas já ajuda a comprar feijão, ovos, leite, essas coisas”, conta.
Ainda segundo o Ipea, há uma tendência de aumento na remuneração dos trabalhadores domésticos, em virtude da política de valorização do salário mínimo: de R$ 525, em 1995, para R$ 877, em 2018, segundo valores reais deflacionados pelo INPC médio de 2018.
Fonte:IG