Os esparadrapos da acupuntura são os acordes dissonantes dessa introdução. “Quando a gente vai dedilhar o trompete, a gente fica com esses dedos aqui, e aí começa a doer. Começou aqui atrás, no ombro, e veio irradiando pelo braço todo e complica”, conta o trompetista Hélio Ramiro.
Uma lesão por esforço repetitivo não poderia caracterizar melhor o personagem central dessa reportagem: um profissional aposentado que não parou de trabalhar.
“A gente tem que custear a casa, pagar prestações e todas aquelas coisas do dia a dia que uma família comum tem. O fôlego que eu tinha quando era jovem já caiu bastante, mas dá para tocar ainda”, afirma Hélio.
O número de trabalhadores com mais de 70 anos subiu quase 23% em um ano; bem mais do que a média de todas as faixas etárias, que foi de 9%.
“A população com mais de 70 anos que ainda trabalha foi a principal atingida pela pandemia, até por conta do risco de saúde. Então, é natural que agora também tenha uma recuperação um pouco mais importante. Essas empresas que estão tendo que recolocar essas vagas vão procurar trabalhadores mais experientes, que já passaram por vários treinamentos, que conhecem todo o ciclo dos processos dentro das empresas. Então, essa é uma opção interessante aí para esse momento de recuperação”, explica Renan Pieri, professor de economia da FGV-Eaesp.
A última Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio contou quase 1,2 milhão de trabalhadores com 70 anos ou mais na ativa, e a curva mostra uma volta acelerada desse grupo ao mercado desde 2016. Caiu, mas já está de volta ao mesmo nível pré-pandemia.
A caminhada até a aposentadoria está cada vez mais longa por causa da alta do custo de vida e da carga do envelhecimento da população que recai sobre o sistema previdenciário dos países. Mas também porque os idosos estão chegando muito bem aos 70, 80 anos, com boa capacidade física e de adaptação ao mercado de trabalho.
O motorista de aplicativo Celso Pongeluppi é um bom exemplo disso. Lidar com os aplicativos nunca assustou o economista aposentado de 71 anos.
“Procuro me atualizar o máximo possível em termos de tecnologia, avanços. Só aposentadoria não dá. Só hoje eu fui na farmácia, eu gastei 200 paus. Só hoje. Não dá! Tem que trabalhar”, afirma.
O geriatra Daniel Apolinário, do HCor, recomenda: “Existem vários estudos mostrando que os idosos que permanecem no mercado de trabalho por mais tempo têm uma qualidade de vida melhor, se mantêm independentes por mais tempo, e acabam tendo até uma saúde melhor”. Mas para o trompetista Hélio, o compromisso de mais de cinco décadas com a orquestra está por um fio. É que aos 72 anos, apareceu uma nova paixão. “É que veio meu primeiro neto, nasceu o primeiro neto. Eu tenho um casal de filhos e aí a minha filha me deu um netinho. Agora a gente tem que arrumar um tempinho para curtir o garoto, essas coisas”, diz.
Fonte: Globo