- Comentário originalmente publicado no site https://congressoemfoco.uol.com.br/
Finalmente o Brasil parece acordar para corrigir um equívoco histórico e, por meio de um projeto de lei que tem tudo para ser aprovado no Congresso Nacional, vai legalizar todas as modalidades de jogos de apostas, incluindo uma atividade de mais de 130 anos de vida – o jogo do bicho. O PL 2234/22 também legaliza cassinos, bingos e apostas em cavalos e permite a integração entre cassinos e resorts de alto padrão.
De autoria do ex-deputado federal Renato Vianna (MDB-SC), e que tem no Senado a relatoria do senador Irajá (PSD-TO), defensor do projeto, o PL já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Tem recebido o apoio entusiasmado de ministros do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, incluindo Fernando Haddad (Fazenda), Luiz Marinho (Trabalho), Celso Sabino (Turismo) e André Fufuca (Esportes). Todos eles vêm ressaltando a importância do projeto e o significado de sua aprovação: a regulamentação do jogo, bem disciplinada, com a garantia da supervisão do Estado brasileiro e a proteção de cidadãos, a atração de investimentos e a geração qualificada de empregos e renda.
O PL é fruto de um entendimento da sociedade, do esforço do governo e da maturidade de parlamentares que, juntos, podem estimular o turismo, atrair investimentos e garantir ganhos sociais e econômicos. É também o reconhecimento de que medidas jurídicas proibitivas de décadas se mostraram ineficazes em coibir e criminalizar os jogos de apostas, incluindo o jogo do bicho e as atividades a ele relacionadas. O presidente Lula já indicou que, se o projeto for aprovado pelo Congresso com um acordo entre os partidos, deve sancioná-lo. Acertadamente, o presidente apontou aquilo que chamou de “hipocrisia”, uma criminalização para práticas disseminada sem todo o país.
É um projeto dos mais importantes e com regras bem definidas. O texto autoriza a instalação de cassinos em polos turísticos ou em complexos integrados de lazer, sob o limite de um cassino em cada estado e no Distrito Federal, com exceção de São Paulo, que poderia ter até três cassinos, e de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Amazonas e Pará, cujo limite previsto é de dois cassinos. Também poderão funcionar casas de jogos em embarcações marítimas e fluviais, que seguirão regras específicas. A proposta também estabelece regras para o jogo de bingo em modalidades de cartela e eletrônica, e permite em cada estado o credenciamento de uma pessoa jurídica a cada 700 mil habitantes para a exploração do jogo do bicho. As corridas de cavalos poderão ser exploradas por entidades turfísticas (ligadas ao turfe) credenciadas no Ministério da Agricultura, que também poderão explorar, ao mesmo tempo, jogos de bingo e videobingo.
Dentro do mesmo esforço, o governo está avançando na regulação do setor de apostas de quota fixa, com novas regras que começarão a vigorar em 2025 e obrigarão que empresas tenham sede no Brasil e não em paraísos fiscais.
Justificativas financeiras e sociais
Agora, com a aprovação do PL 2234/22 a cultura e a realidade vão se impor sobre a preferência original de legisladores. As justificativas para superar esse longo período de criminalização não se resumem ao seu valor histórico. Por exemplo, de acordo com estimativas apresentadas na Comissão Especial do Marco Regulatório do Jogo no Brasil, da Câmara dos Deputados, pelo Instituto Jogo Legal (IJL) – organização não governamental que produz estudos e pesquisas sobre jogos e loterias –, somente o jogo do bicho empregava, em 2016, cerca de 450 mil pessoas informalmente, mais de 20 milhões de pessoas apostavam diariamente, e a atividade faturava cerca de R$ 12 bilhões ao ano. Naquele momento, o IJL apresentou estimativa, segundo a qual a arrecadação tributária anual pode ultrapassar a marca de R$ 71 bilhões, considerando todas as modalidades. Somente em relação às modalidades de jogos previstas no PL, o valor arrecadado chegaria a R$ 27 bilhões.
A legalização trará a formalização do emprego dessas milhares de pessoas, permitirá o cumprimento da legislação trabalhista e estimulará a inclusão social – afinal, pessoas com baixa escolaridade e baixa renda compõem a maioria dos trabalhadores que atuam no jogo do bicho. A instalação de lojas físicas, não mais clandestinas, também vai assegurar investimentos, segurança e infraestrutura para regiões mais pobres. Considerando a alíquota máxima da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a comercialização de jogos e apostas (Cide-Jogos), no patamar de 17%, somente o jogo do bicho deve permitir uma arrecadação anual de R$ 2,04 bilhões, sem contar a Taxa de Fiscalização de Jogos e Apostas (Tafija) e as demais obrigações tributárias que envolvem o exercício legalizado da atividade.
Segundo o Ministério do Turismo, apenas um empreendimento voltado para a instalação de resorts integrados pode mobilizar cerca de R$ 1 bilhão. Não à toa é o que fazem hoje países como Estados Unidos, e os nossos vizinhos Uruguai, Paraguai e Argentina – que inclusive recebem brasileiros em busca dos seus cassinos.
Transparência e segurança
Os argumentos vão, portanto, além das fronteiras nacionais. Das 20 maiores economias do mundo, segundo os relatórios mais recentes do World Economic Outlook, apenas o Brasil, a Indonésia e a Arábia Saudita não exploram o setor de jogos e apostas. Entre os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 37 proíbem os jogos de chance, conforme o levantamento realizado pelo IJL. Como ressaltou recentemente o ministro Haddad, todos os países da OCDE regulamentaram o jogo. Em todo o mundo, mais de 90% dos países fizeram o mesmo.
São números nada triviais. Mas convém citar ainda o fato de que a legalização está umbilicalmente associada ao aumento da transparência das operações e da segurança das apostas e dos apostadores. Mostrando números, evidências e contradições, um artigo acadêmico publicado na revista Direito e Liberdade mostrou que a regulamentação do jogo trará benefícios aos consumidores e apostadores, possibilitando a existência de controle, limitando os lucros e impondo a manutenção de programas de assistência a jogadores compulsivos. O artigo demonstrou ainda que nossos tribunais, orientados pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, têm constantemente se manifestado no sentido de proteger jogadores e apostadores diante da incoerência da legislação, “que exige legalização ou regulamentação, mas permite que órgãos oficiais do Estado criem, orientem e banquem um número assustador de modalidades lotéricas”.
Ademais, a legalização inibirá a prática de atividades ilícitas, diante da necessidade de cumprimento das disposições normativas, somada com a desmotivação do setor em buscar a associação ao crime organizado, por já exercer uma atividade lícita. Do mesmo modo, agrava as penalidades aplicáveis ao exercício ilegal da atividade. Quem não assistiu, assustado, à série documental “Vale o escrito”? Criado por Felipe Awi, com direção de Ricardo Calil e supervisão artística de Pedro Bial, a série mergulha na guerra do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Brigas internas, fraudes, prisões, vinganças e assassinatos que se organizam e se alimentam a partir da proibição. Viu-se o óbvio: a não legalização produz a própria expansão do crime organizado.
Legalizar o jogo significa, portanto, reconhecer uma prática centenária e tradicional como o jogo do bicho, disciplinar os bingos e as apostas, gerar empregos formalizados, promover dignidade às milhares de pessoas que trabalham e apostam, aumentar a arrecadação tributária, assegurar transparência e segurança às apostas e aos apostadores, e, por fim, mas não menos importante, coibir a sua associação ao crime organizado. Difícil encontrar alguma mudança na legislação com tantos argumentos em seu favor.
José Dirceu – Advogado e militante político, natural de Passa Quatro (MG), Dirceu iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil. Foi presidente nacional do PT, deputado estadual por São Paulo de 1987 a 1991, deputado federal por São Paulo três vezes entre 1991 e 2005 e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro governo Lula, em 2003.