Disseminador de fake news não quer te revelar nada que a grande mídia esconde. Ele quer seduzir sua audiência, ganhar dinheiro com o caos
A combinação de má gestão política com aquecimento global e chuvas atípicas resulta em morte. As inundações no Rio Grande do Sul ceifaram a vida de ao menos 113 pessoas e destruíram a de outras milhares que viram seus bens, memórias, fotos e documentos sumirem em águas lamacentas. Pode parecer óbvio para muitas pessoas que é essa a realidade.
Mas há quem fantasie teses de que a catástrofe gaúcha é uma resposta divina, uma ira de seres satânicos ou um plano arquitetado por bilionários para controle populacional. As ideias que parecem um delírio não são nem insanidade nem opinião, são fake news: desinformação feita para aterrorizar e matar.
Com a máquina de ódio ligada, o cenário de catástrofe no Rio Grande do Sul piora. A produção e disseminação de informações propositadamente falsas estimula o caos, a desordem e se torna mais um obstáculo para servidores públicos e voluntários. O simples fato de uma autoridade ter que parar seu trabalho de resgate para gravar vídeo desmentindo fake news traz enorme prejuízo.
É muito difícil que alguém mantenha a sanidade mental enquanto vê o patrimônio que sua família e sua cidade construíram ser destruído. Em um cenário assim, dizer falsamente que os órgãos do governo enviam comida vencida, que a Anvisa impede a entrega de medicamentos e que as milhares de doações são retidas para a cobrança de nota fiscal e ICMS, estimula o pânico em quem já perdeu tudo e a raiva em quem quer ajudar.
É importante estabelecer o que é cada coisa. Em meio ao desespero, diante de familiares e cidades sumindo na enchente e com limitação de internet, é evidente que as pessoas vão receber e repassar informações desencontradas e incorretas. O que é totalmente diferente da disseminação massiva e proposital de informações falsas.
A fake news surge quando influenciadores, deputados, senadores e perfis falsos criam e espalham teses mentirosas, maquiam a realidade com alarmismo para viralizar e impulsionar o engajamento com o terror. Uma boa notícia é que muitos desses crimes já estão sob investigação da Polícia Federal. Aos desavisados, cito, por exemplo, a Lei de Contravenções Penais, que prevê pena de prisão para quem “provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto” (Art.41).
Ninguém pode ser ingênuo. Disseminador de fake news não quer te revelar nada que a grande mídia esconde. Ele quer seduzir sua audiência, gerar engajamento para ter lucro e ampliar a plataforma de seguidores para quando chegarem as eleições.
Nesta sexta, 10, o repórter Matheus Teixeira e o fotojornalista Pedro Ladeira, da Folha de S. Paulo, reportam outra dimensão da tragédia. Prefeitos relataram a eles que seus municípios, não apenas vão ter que se reconstruir, mas mudar de lugar, tamanha a devastação. Essa é a realidade, o fato triste e cruel.
Em paralelo a isso, em grupos bolsonaristas que ainda hoje flertam com golpe militar circulam mensagens apócrifas e de perfis falsos (claro, além de tudo são covardes) dizendo que “o novo Plano Marshall do Brasil para o Rio Grande do Sul é uma estratégia elaborada por conspiradores e traidores da nação, com o objetivo de aproveitar-se de calamidades planejadas para desapropriar os cidadãos de suas casas, terras e propriedades”. É preciso carregar um caráter extremamente corrompido para dizer uma atrocidade dessas.
É essa confusão que as fake news causam. É como se fossem dois mundos paralelos, quando um é verdadeiro e outro é forçadamente falso. Isso ajuda a confundir o entendimento da realidade, esconde o trabalho de quem bota a mão na massa para salvar vidas e limpa a barra de quem deveria ter prevenido a tragédia.
Há uma orquestração para disseminação de informações falsas e não é de hoje. O esgoto das redes sociais aflora em momentos catastróficos como esse e o período da pandemia. Quantos morreram tomando cloroquina ou pela recusa da vacina (da compra e da aplicação)?
A regulamentação de redes sociais é fundamental para o país, mas segue em sono profundo no Congresso. O controle é necessário não só por serem oligopólios e jogarem contra o livre mercado, mas também para efetiva fiscalização e regulamentação de instrumentos que usam tecnologia para direcionar conteúdos de ódio e desestabilizar a ordem social. Quem se apoia nessa tese bamba, da irrestrita circulação de informação nas redes, vai defender que vídeos de pedofilia circulem pelas redes livremente até que a Justiça decida pela sua remoção?
Regulamentar situações assim, claro, não é censura. O que é crime no mundo real, também o é no virtual. O livre discurso, aliás, já tem suas limitações no país, se alguém proferir ofensas racistas estará sujeito a ir para cadeia.
Em razão da tragédia gaúcha, as autoridades políticas do país se juntaram para otimizar esforços e botar a máquina pública para operar o mais rápido possível em prol da população desassistida. O momento é oportuno – e raro – para que essa breve união coloque em marcha a regulamentação de redes sociais.
Texto publicado originalmente na Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro, no site Terra.
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