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A Justiça do Trabalho precisa pedir perdão. E mudar

A comunidade jurídica trabalhista está desnorteada com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de reclamações constitucionais sobre advogados associados, franquias, pejotização, transportadores autônomos de carga, representantes comerciais, salão de cabeleireiros e, finalmente, trabalhadores em plataformas digitais.

O entendimento do STF, para preservar os julgamentos vinculantes efetuados no sentido de que há outras formas de trabalho dignas, que não o vínculo de emprego, e licitude de terceirização em atividade-fim, tem gerado decisões que retiram a competência da Justiça do Trabalho para analisar eventual fraude na contratação de trabalhadores, mesmo que a causa de pedir e o pedido sejam de reconhecimento de vínculo de emprego.

O sentimento geral é de esvaziamento da Justiça do Trabalho, já que o futuro das relações trabalhistas, conforme consenso, não será a utilização da roupagem jurídica do vínculo de emprego. As novas formas de trabalhar pedem outro tipo de regulação.

Logo, conforme o STF vem fixando a matéria, à Justiça do Trabalho caberia apenas processar e julgar o tradicional vínculo empregatício, enquanto este ainda existir. Em outras palavras, morreríamos por inanição.

E por qual motivo precisamos pedir perdão? Porque o verdadeiro culpado por este resultado somos nós, a comunidade jurídica trabalhista, nós, usuários da Justiça do Trabalho.

O primeiro grande erro que cometemos foi tratar o conflito social capital-trabalho sempre pelo viés da luta de classes. Instigamos a litigiosidade, os interesses antagônicos, demonizamos os empresários, desconfiamos dos empreendedores, maldizemos os investidores e, por outro lado, enaltecemos a hipossuficiência a ponto de transformá-la em verdadeira incapacidade.

Sim, chegamos ao ponto de entender que um trabalhador empregado não pode fazer escolhas dentro da relação de emprego, que ele deve ser protegido dele mesmo. Viramos absolutistas do princípio da proteção.

Fomentamos um estado de coisas para manter viva a chama original do Direito do Trabalho e, com isso, infantilmente, esquecemos que sem capitalismo simplesmente não existe relação de emprego. Aviltamos nosso garantidor, o empresário. Por isso, vai o primeiro pedido de perdão.

Segundo, perdemos o bonde da história quando relegamos ao segundo plano as demais relações de trabalho, priorizando a relação de emprego como o eldorado da proteção trabalhista, entendendo que qualquer regulamentação diferente seria precarização.

Qualquer tentativa de concessão de direitos trabalhistas mínimos para novas formas de contratação, qualquer modificação nos sacrossantos direitos estabelecidos na CLT, qualquer medida de flexibilização do rígido pacote celetista geravam o mesmo mantra midiático e estigmatizante da precarização.

Com isso, perdemos a melhor oportunidade que surgiu de fortalecermos os dogmas trabalhistas que tivemos, a reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho para todo e qualquer tipo de relação trabalhista.

Ao invés de expandirmos o pensamento para novas regulações do trabalho humano, ao invés de admitirmos novos modelos mais leves e flexíveis para a contratação de trabalhadores em diferentes formas de trabalhar, impedimos sequer que houvesse este debate, tachando de neoliberais fascistas quem ousasse pensar diferente.

Jogamos fora, portanto, as demais relações de trabalho que, agora, o STF classifica como relações civis, comerciais ou, pior, de consumo. Perdão.

Em terceiro lugar, perdão, perdão e perdão pelo que fizemos com a reforma trabalhista de 2017. Aqui todo perdão será pouco pelo que a comunidade jurídica trabalhista fez. A ideologia arcaica do trabalhismo brasileiro, o elogio a uma norma outorgada por um ditador (nossa CLT getulista), a resistência explicita à aplicação de um texto legal, inclusive por setores da magistratura, impediu a última tentativa de modernização capaz de salvar a Justiça do Trabalho.

A Lei 13.467 de 2017, que pretendeu refundar, ainda que parcialmente, o Direito e o Processo do Trabalho continha, em seu bojo, todos os valores necessários para uma nova proteção trabalhista: aumento da liberdade sindical com o fim da contribuição compulsória, reforço à negociação coletiva com prevalência sobre a lei, garantia do mínimo existencial trabalhista como norma de ordem pública, intervenção mínima do Poder Judiciário nas negociações, responsabilidade dos atores sociais no uso da Justiça do Trabalho (sucumbência e gratuidade), além de maior possibilidade do exercício da autonomia individual de vontade.

Está tudo lá. Tudo que o momento atual das relações de trabalho exige: proteção do essencial (artigo 611-B da CLT) e liberdade para construção da proteção adequada via negociação com sindicatos (artigo 611-a da CLT).

Poderíamos ter sido maduros, entendido o momento que vivíamos, nos adaptado às mudanças, mas não, ignoramos a realidade e criamos Jornadas, livros, artigos e jurisprudência para impedir a aplicação da nova lei.

Geramos uma insegurança jurídica nunca antes imaginada, tudo por defesa ideológica de um passado que jamais voltará, cada um pensando nos seus interesses próprios, gananciosos em manter aquilo que nos sustenta, como abutres famintos que não se importam de sorver apenas os restos da verdadeira vítima desse sistema: o empreendedor.

Perdão
E não para por aí. Temos que pedir perdão ao STF. Orgulhosos como julgadores que sabem mais do que os outros, impregnados do sentimento de que apenas nós conseguimos saber o que é uma “Justiça Social”, não acatamos os rumos traçados pela Corte máxima do país, que há muito já apontava para o entendimento que hoje nos atordoa.

Desde os debates acerca dos contratos de natureza administrativa, passando pelos conflitos de competência sobre sucessão trabalhista de empresas em recuperação judicial, o STF vem sinalizando que nosso exagero geraria a perda de competência.

A facilidade com que a Justiça do Trabalho ignora uma lei para atender seus anseios é de fato impressionante. Com dois princípios julga-se tudo a favor dos trabalhadores, no afã de fazer o bem, de corrigir injustiças históricas, de erradicar desigualdades realizando distribuição de renda.

Transformam-se os magistrados em agentes ativos para obtenção de um fim ideológico, garantido uma expiação de culpa para contribuir com os menos favorecidos, obviamente trazendo para o sacrifício apenas o dinheiro alheio.

E essa mutação não é espontânea, mas provocada pela advocacia trabalhista, que formula as teses e postula pretensões no desejo de encontrar um “bom” juiz capaz de ser sensível à causa, que no mundo paralelo de uma justiça ideal (para eles) transforma de forma corajosa uma tese em obrigação, tudo amparado em abstratas considerações sociológicas que, sob a capa jurídica de um pós positivismo distorcido, concretiza o estrago em decisões de beleza estética e conteúdo duvidoso.

Finalmente, para manter o espaço devido deste recorte, perdão a toda sociedade. Erramos e precisamos reconhecer. A Justiça do Trabalho precisa recomeçar, ser humilde em aceitar que as coisas mudaram, que o mundo a sua volta evoluiu. E, como todos sabemos, um organismo que não acompanha a evolução simplesmente se extingue. Ainda dá tempo.

Por último, aos que não concordam com minhas reflexões, que me perdoem. Fatalmente estaremos juntos lá no fim.

Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

  • Comentário originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico.
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