O sociólogo José Pastore, criador da Fipe e da Embrapa, especialista em legislação trabalhista. Autor de mais de três dezenas de livros, quase todos sobre esse tema, foi professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da USP concedeu entrevista ao site Metrópoles, onde analisa alguns aspectos da economia brasileira, principalmente o debate sobre a reforma trabalhista, realizada em 2017, que alterou a legislação de 1943. Este tema promete ser debatido pelo novo governo federal com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Muitas das leis trabalhistas em vigor foram consolidadas nos anos de 1940, ou seja, com mais de 70 anos de vigor. Pastore comenta que neste tempo muita coisa foi mudada e que era inevitável uma reforma para atualizar regras.
O advento digital é um dos grandes responsáveis pelas mudanças. Mas havia resquícios como por exemplo: “Se uma mulher quisesse entrar com uma ação trabalhista, teria de consultar o pai, o marido ou o tutor. Em outro caso: para fazer hora extra, ela tinha de descansar 15 minutos antes. Quando foi criada, essa regra fazia sentido, porque o trabalho era braçal e o descanso prévio era importante para as mulheres. Mas isso tudo mudou e essas coisas permaneceram na legislação até 2017.
Negociação foi avanço
A lei antiga foi feita numa época em que as negociações entre empregados e empregadores eram insipientes. Elas nem existiam na prática. O que a nova legislação fez foi facilitar as negociações. Ela deu liberdades às partes para que negociem questões que antes eram rígidas, imutáveis.
Havia a obrigatoriedade do intervalo de uma hora para o almoço. Se o empregado almoçasse em 15 minutos, tinha de ficar os 45 minutos restantes do lado de fora da catraca da empresa. E se essa pessoa estivesse disposta a almoçar em menos tempo para aproveitar o tempo e fazer um trabalho para a faculdade, ou mesmo, sair mais cedo para buscar o filho na escola, não podia.
A reforma estabeleceu que, se as partes quiserem negociar isso com a participação dos sindicatos, o resultado dessa negociação deve prevalecer sobre a lei. Ou seja, ela dá liberdade às negociações. Essa foi a grande mudança implementada pela reforma.
Mas se as partes não quiserem negociar, ficam mantidas as velhas regras da época da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Isso quer dizer que a garantia legal fica preservada sem retoques. A reforma trabalhista, portanto, criou um sistema engenhoso e criativo de liberdade, com proteção garantida. Quem quiser negociar, negocia e muda. Quem não quiser, usa a CLT do jeito que está e pronto.
Sindicatos enfraquecidos
As novas regras, enfraqueceram os Sindicatos, mas Pastore pondera que o enfraquecimento é mundial. Se excluirmos os países escandinavos, eles perderam peso em todos os países. E o sindicato é uma peça importante para a empresa e para a democracia. Como uma companhia com 3 mil funcionários vai negociar um acordo com seus trabalhadores individualmente? Impossível. Portanto, a negociação coletiva é importante. Agora, qual é a melhor vitamina para fortalecer um sindicato? É abrir espaço para a negociação, fomentar esse tipo de discussão. Foi isso o que a reforma fez.
Mas a reforma trabalhista não tratou dos trabalhadores de aplicativos. Não tocou na questão da “uberização” do trabalho. Foram dois motivos. Em 2017, quando a nova lei entrou em vigor, a incidência desse tipo de atividade não era tão grande. Ela avançou muito na pandemia. O segundo ponto é mais técnico. Trata-se da heterogeneidade, a falta de padrão, nesse tipo de trabalho. Algumas pessoas entregam alimento de motos, outras dirigem carros, mas também o desenhista, a manicure, o tradutor, o pedreiro, diversos profissionais que estão ligados a plataformas para receber serviços. E esse tipo de trabalho não tem nada a ver com a CLT, que foi o objeto da reforma trabalhista.
O regime de trabalho dessas pessoas é muito diverso. Alguns atuam por três horas, outros o dia inteiro. Existem aqueles que trabalham no fim de semana e os que ficam uma semana sem trabalhar. Há os que estão conectados a uma plataforma, mas também os que se ligam a diversas ao mesmo tempo. É um mundo em que há descontinuidade no espaço, no tempo, na forma de trabalhar e no tipo de profissão. Como você vai estabelecer uma relação de emprego nesse caso?
Esse é um tema urgente e o mundo inteiro está à procura de uma forma de levar a proteção a essas pessoas. E isso tem de ser feito porque elas são humanas, envelhecem, sofrem acidentes, as mulheres ficam grávidas.
Sem a CLT, qual caminho tomar? Ninguém resolveu de fato esse problema. Os países que mais avançaram nesse campo estão estabelecendo proteções por meio das leis previdenciárias. Acho que aí está a solução. Temos de usar a Previdência, que já está meio que voltada para isso. Ela já atende tanto o empregado, como o autônomo, o individual, o facultativo e o voluntário. Essas pessoas estão muito mais próximas do mundo das plataformas do que do emprego tradicional. Se entrarem para a Previdência, terão no mínimo 15 proteções, como aposentadoria por tempo de serviço, idade ou invalidez. Só não terão direito a férias e ao 13º salário. Mas de novo: como você vai calcular esses dois benefícios para quem trabalha para cinco plataformas diferentes? Então, ainda assim há limites, mas menores.
É muito mais barato garantir a proteção desse trabalhador do que esperar que essa pessoa caia no colo da assistência social na maior precariedade. O mundo está resolvendo essa questão de diversas formas. Um bom exemplo é dado pelos alemães. Na Alemanha, um ator, um profissional que muitas vezes trabalha de forma um tanto errática, é obrigado a se vincular à Previdência. Para ter proteção, ele paga uma parte, o teatro e o governo completam, cada um com um terço, por exemplo. Mas pode ser 50% para o trabalhador e 25% para as demais partes.
No caso dele perder o emprego há duas alternativas. Uma delas é continuar pagando a parte dele, se puder. Nesse caso, vai manter as proteções, mas serão reduzidas no tempo. Quer dizer, se ficar o resto da carreira assim, vai ter um benefício previdenciário menor. Depois, se voltar a trabalhar, pode retornar ao sistema anterior. Se parar de contribuir e se recuperar mais adiante, tem como recolher um valor adicional para recompor o benefício. Em resumo, esse modelo tem flexibilidade por isso pode ser adotado em um sistema tão complexo como as relações de trabalho com plataformas.
Outro tema, e cada vez mais discutido, é o imposto sindical. A reforma trabalhista não acabou com a contribuição sindical. Ela acabou com a obrigatoriedade do pagamento. A lei diz que o trabalhador que quiser pode contribuir. Se o sindicato quiser descontar a contribuição da folha de pagamentos da empresa, também pode. Basta que o empregado autorize o débito. As críticas não aconteceram, portanto, pelo fim da cobrança.
As centrais sindicais e o presidente Lula falam que não vão tentar reativar o velho modelo. Agora, se a proposta girar em torno de uma contribuição voluntária, de fato não vamos voltar ao passado.
Outra crítica é quanto ao estímulo à terceirização provocado pela reforma. Chegou-se a afirmar que com a reforma o Brasil viraria um país de terceirizados. Isso não aconteceu. Há um limite claro para a terceirização nas companhias. Mesmo porque as relações entre uma empresa e os trabalhadores exigem comprometimento e confiança. Não dá para terceirizar tudo. Na verdade, os sindicatos ficaram insatisfeitos por conta de outro motivo. Houve descontentamento porque quando se terceiriza determinada atividade, esses profissionais não fazem mais parte da categoria profissional que representam.
Vão compor outra categoria profissional. Nesse caso, portanto, também não recolhem mais a contribuição para o sindicato antigo. O fato é que, toda vez que a empresa terceiriza parte da mão de obra, algum sindicato perde arrecadação. No fundo, o que existe é uma briga de sindicatos lutando pela maior fatia do bolo de contribuições, critica ele.
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