Texto originalmente publicado no site da Deutsche Welle BR
Em 6 de setembro de 1770, uma mulher negra, escravizada e mãe escreveu de próprio punho uma carta para o governador da capitania do Piauí. Na carta, uma série de violência contra ela, seus filhos e outros escravizados da fazenda de Algodões (nas proximidades de Teresina) foram narradas. Trovoadas de pancadas, sangue saindo da boca, colchão de pancadas foram algumas das expressões utilizadas no documento. A autora dessa carta foi a escravizada Esperança Garcia, mulher negra que nasceu no Brasil e que viu sua vida piorar significativamente quando foi vendida para o novo proprietário.
Esperança Garcia foi ao mesmo tempo a exceção e a regra do seu tempo. Como boa parte das mulheres negras naquela época, ela foi escravizada e viveu sob a ameaça e a execução constante das mais variadas formas de violência (inclusive o afastamento de seus filhos e marido). Mas ela também teve um papel singular. Ela foi uma das pouquíssimas escravizadas que aprendeu a ler e escrever. E mais, ela usou essa ferramenta – adquirida anteriormente quando foi escravizada de jesuítas – para escrever aquela que é considerada a primeira petição da história do Brasil.
Mobilização
Em artigo recente, a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, relembrou a história de Esperança Garcia para advogar em prol da urgência de uma mulher negra no Superior Tribunal Federal (STF). Aqui, endosso o artigo do Ministro, que nos lembra que, em grande medida, o exercício da advocacia no Brasil é celebrado por uma mulher negra, escravizada e mãe, que representava não só a si própria, mas uma classe de mulheres e homens com os quais dividem as agruras e sofrimentos impostos pelo escravismo.
Ainda que iniciada, a ação de Esperança Garcia não foi a única protagonizada pela mulher negra e escravizada afim de mobilizar o sistema de justiça em nome da ampliação das experiências de liberdade e de exercício da cidadania. Em diferentes momentos da história do Brasil escravista, outras mulheres escravizadas e negras tomaram para si a incumbência de mostrar que a justiça poderia e deveria ser maior, beneficiando mais gente.
Lembro aqui as histórias de bolsas de mães negras e escravizadas que viajaram por semanas, criando e sustentando redes complexas de apoio para garantir que seus filhos, nascidos após a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871), pudessem gozar da liberdade. Mulheres que ficaram cara a cara com os representantes da Justiça brasileira de então, e mesmo num jogo desigual, denunciaram que a primeira lei abolicionista do Brasil guardava a perversidade típica da classe senhorial: embora a Lei do Ventre Livre previsse a liberdade dos filhos de escravizados que nasceram depois de sua promulgação, ela concedeu ao proprietário o direito de escolher se eles seriam indenizados por meio do pagamento de uma quantia simbólica, ou pelo trabalho dessas crianças, que seriam seus escravizados até os 21 anos.
Tais exemplos me permitem afirmar que podemos apontar ganhos importantes do sistema e da própria ideia de justiça graças às ações de mulheres negras, mesmo que essa seja uma dimensão silenciada da história do Brasil. Essas mulheres negras não pararam de lutar com o fim da escravidão. Ao contrário.
A organização milimétrica do racismo na experiência republicana brasileira apenas reforçou o lugar da mulher negra como esteio econômico, social, afetivo e moral de boa parte das famílias do país. Mulheres que sacrificaram suas vidas para que seus filhos e filhas tivessem um futuro melhor, o despeito de toda marginalização e descriminalização que o Estado nacional e as elites brasileiras promovem contra as pessoas negras. E se hoje temos uma discussão mais profunda sobre o racismo brasileiro, devemos muito a essas mulheres.
Dívida
Em grande parte, é também sobre isso a necessidade mais urgente da indicação de uma mulher negra para o STF. O Brasil tem uma dívida histórica com as mulheres negras, não apenas pela exploração sistemática do nosso trabalho e de nossos corpos, mas também porque o Brasil insistiu em dizer quais lugares nós pensamos ou não estar.
E, uma vez mais, apesar da ordenação racista, as mulheres negras seguem ampliando os sentidos de justiça, inclusive fazendo isso de forma competente dentro do próprio sistema de justiça brasileiro. Aquele elenco dos nomes da juíza Adriana Cruz, da promotora Lívia Sant’Anna Vaz e da advogada Soraia Mendes sugeridos pelo Movimento Mulheres Negras Decidem na campanha por uma mulher negra no STF.
Me recuso a apontar as qualidades e competências dessas mulheres. Em primeiro lugar porque suas trajetórias profissionais e de vida são provas contundentes de que qualquer uma delas cumpre todos os requisitos necessários para estar no STF. Em segundo lugar, porque tais competências não são pertinentes quando se trata da indicação de homens brancos.
Existe a possibilidade de ampliar a representatividade no Brasil. Existe a possibilidade de se fazer justiça dentro da justiça. Existe a possibilidade de confiança nas amarras do passado e mudar o presente. Basta vontade política.
Espero que o presidente Lula não perca esse vínculo da história.
Ynaê Lopes dos Santos
Historiadora especialista em História da escravidão e das Relações raciais nas Américas
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo Brasileiro: uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe .