Artigo publicado originalmente pelo portal Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br/)
Não é de hoje que a Justiça do Trabalho sofre ataques midiáticos, com sugestões, volta e meia, para sua extinção. Lembro bem da época do falecido Antônio Carlos Magalhães, que não apenas pregava o próprio fim da Justiça do Trabalho como ainda, em bravata, dizia para mandar os processos para ele que tudo seria resolvido.
Quem duvida, basta acessar o site do Senado Federal que nas notícias de 3 de março de 1999 vai encontrar o seguinte:
“O presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, defendeu na manhã desta quarta-feira (dia 3) o fim ‘do TST (Tribunal Superior do Trabalho) e de toda a Justiça do Trabalho, que é anacrônica e não pode existir em um país que quer se desenvolver’. O senador lembrou o fato de que ‘ela só existe no Brasil’. Antônio Carlos lembrou ainda que há muito tempo defende a tese de acabar com os juízes classistas, ‘mas alguns conservadores no Senado, e alguns se dizem progressistas, não querem’. Ele enfatizou que sua posição é antiga e acrescentou que se tornou ‘mais radical’, defendendo a proposta de uma extinção completa da Justiça do Trabalho”.
Eu era magistrado trabalhista havia pouco mais de um ano, tendo ingressado na carreira em 28 de novembro de 1997, e fiquei estarrecido. Como assim, extinguir a Justiça do Trabalho? Será que o então presidente do Senado não consegue compreender o papel social deste ramo do Judiciário? Não entende a importância de uma Justiça sensível às questões do conflito capital-trabalho?
Fizemos movimentos, passeatas, abraços ao prédio do tribunal, enfim, atuamos positivamente contra a ideia de extinção, e quero deixar registrado que faria tudo novamente.
A única diferença é que, hoje, após quase 26 anos de magistratura, tenho maturidade suficiente para entender a crítica e, melhor, mudar para evoluir. A defesa ferrenha de um estado de coisas, santificando determinada situação, pode ser apenas obtusidade ou, no mais das vezes, medo e interesse.
O fato é que, ano após ano, as críticas se avolumam quanto à forma como a Justiça do Trabalho atua, prato cheio para seus detratores, pois frequentemente somos protagonistas na mídia de casos difíceis de serem aceitos pelos jurisdicionados e nós, orgulhosos e soberbos, creditamos nossos inimigos como algozes dos trabalhadores, como capitalistas vorazes.
Os exemplos são muitos, mas o que mais chama atenção no momento são as críticas que o próprio Poder Judiciário, pelo seu órgão máximo, o Supremo Tribunal Federal, tem feito aos Juízes do Trabalho no que diz respeito ao descumprimento de suas teses vinculantes.
O ministro Gilmar Mendes talvez seja o que mais levanta o tom contra a Justiça do Trabalho, tendo repercutido em diversas mídias sua recente fala, como na revista Veja, em 20/10/2023:
“Os caprichos da Justiça do Trabalho não devem obediência a nada: à Constituição, aos Poderes constituídos ou ao próprio Poder Judiciário. Observa apenas seus desígnios, sua vontade, colocando-se à parte e à revelia de qualquer controle”, diz Mendes.
O decano critica juízes que afrontam decisões do STF: “Os magistrados do trabalho reconhecem que a todo custo buscam se desviar da jurisprudência desta Corte: ora alegam que o precedente não é específico para a situação dos autos, ora tergiversam sobre a necessidade de valoração do acervo probatório. As justificativas são inúmeras, mas o propósito é único e bem definido: implementar o bypass dos precedentes do Supremo Tribunal Federal. Não causa espanto que tantas reclamações como a destes autos aportem na Corte”.
Óbvio que os juízes ficam incomodados, mas novamente a questão passa não apenas por reação, tentando-se criar justificativas para o comportamento dos magistrados trabalhistas e demais atores, como procuradores do Trabalho, devendo haver uma reflexão sobre como chegamos a este ponto.
Veja, é fácil criar uma narrativa para demonizar o STF: basta dizer que nós compreendemos melhor que todos o conceito de “justiça social”, que nós nos importamos com os direitos fundamentais dos trabalhadores, que nós sabemos analisar se houve ou não fraude em uma contratação de natureza civil, que apenas e tão somente nós podemos analisar os problemas do conflito capital-trabalho.
A verdade, entretanto, passa longe disso. Na minha concepção, o que a sociedade e, agora, o Supremo não aguentam mais é a figura do “justiceiro trabalhista”. O que seria isso? Como identificar essa deturpação de ideia de Justiça na área trabalhista?
Os sintomas são claros.
Primeiro, o justiceiro assume uma posição ideológica para aplicar o Direito do Trabalho, moldando sua interpretação àquilo que reafirma sua concepção de mundo, pouco importando se o ordenamento jurídico diz o oposto.
Segundo, o justiceiro se especializa em criar teses sociológicas a partir de normas abstratas previstas na Constituição para embasar, em textos sensíveis, suas posições, deturpando todo o processo cognitivo de uma decisão judicial e destruindo a técnica do pós-positivismo. Basicamente o justiceiro primeiro pensa na solução do caso para depois buscar alguma argumentação justificadora.
Terceiro, o justiceiro não se dá por rogado. Se sai uma lei contrária às suas posições, arruma-se alguma inconstitucionalidade. Se surge uma tese vinculante do Supremo considerada contrária às suas concepções, que se faça uma distinção eterna para o caso concreto. O fenômeno de driblar as decisões vinculantes de tribunais superiores já foi objeto de minha crítica aqui nesse espaço.
Finalmente, o justiceiro trabalhista é dotado de extrema vaidade. Após decidir, é o primeiro a viralizar sua própria decisão. Adota o resultado do seu trabalho como verdadeira criação de obra de arte, a mais fina percepção do mundo do trabalho que ninguém antes conseguir alcançar.
Essa figura, do “justiceiro trabalhista”, é que efetivamente destrói a Justiça do Trabalho. Perdeu-se o limite entre o papel do magistrado, de interpretar e aplicar a ordem jurídica, e o de agente social de mudanças, uma espécie de revolucionário estatal que, no caso, possui ideias reacionárias, pois normalmente essa figura idealiza um suposto passado glorioso do Direito do Trabalho da época getuliana.
Afinal, o que Antônio Carlos Magalhães e Gilmar Mendes possuem em comum? O que podemos extrair de positivo dessas críticas, do passado e atuais?
A meu ver, é simples. Não cabe aos juízes do Trabalho nenhuma forma de resistência às mudanças legislativas ou jurisprudenciais, gostemos delas ou não. Debater academicamente, discordar das decisões do Supremo, opinar sobre o que deveria ser, faz parte do jogo. O que não se pode admitir é uma postura ideológica de descumprimento da vontade do legislador e da Corte Constitucional.
Eu mesmo não concordo com a ideia de que a Justiça do Trabalho não pode mais analisar alegações de fraude em contratos civis, como hoje o STF fixa em reiteradas reclamações constitucionais e em alguns julgamentos vinculantes (transportador autônomo de carga e representante comercial). E daí? O que minha vontade pessoal importa para análise desses casos? Nada.
Antes de ser um pensador iluminado, detentor da sabedoria máxima, sou um juiz que fez um juramento e que compreende seus limites. Não decido sempre conforme minha concepção e minha vontade. Julgo na forma estabelecida validamente pelo ordenamento jurídico e como reiteradamente cristalizado na jurisprudência.
O jurisdicionado não precisa de um salvador. Ele precisa de coerência e segurança. Precisamos erradicar a figura do “justiceiro trabalhista”.
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Otavio Torres Calvet é diretor da Escola da ABMT (Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho).